quarta-feira, 14 de julho de 2010

carta ao beija-flor

São Paulo, segunda-feira, 14 de Agosto, 1995.

Meu querido beija-flor

Hoje me tomei cheio de coragem para enfim entrar em contato. Eu não sabia bem como fazer, se deveria fazer. O seu telefone eu já havia me esquecido, o perdi naquele dia, em que tive de sair apressado, deixando tudo pra trás.
O teu endereço não esqueço jamais, rua das Andorinhas, esquina com algum Duque, do qual não me recordo o nome, porém o número era nove, o bairro chamava-se, jardim das flores, e a tua casa, aquela linda casa branca de madeira com janelas azuis. Tinha um grande jardim, cheio de camélias, lírios e rosas brancas, e tantas mais que não me lembro, ou jamais soube o nome. Sempre esquecia de perguntar-lhe o nome daquelas flores, em que os beija-flores iam aos montes beija-las. Nunca me importei cm isso antes, pois achei que passaria a vida ali, do teu lado, à olhar aquela benção da mãe natureza.
Se lembra que juramos um ao outro, jamais deixar que algo nos impedisse de ver os beija-flores? Eu me lembro... Pois prometi olhando em teus olhos de estrela cadente. Eu sempre fazia o mesmo pedido a esta estrela, que ela jamais deixasse de brilhar pra mim...
Nós nos deitávamos em seu quintal, naquelas noites de intenso calor, as noites de verão em pleno carnaval, ficávamos em festa, não sabia se era a Vai-Vai que ia ser campeã, mas sempre torci para a Beija-flor.
Ficamos tão alienados do resto do mundo que nem podíamos imaginar o que a vida poderia fazer das nossas vidas. Você tinha 18, e eu apenas 16, mas juro que mesmo com meus 27 anos de idade que possuo hoje, nunca deixei de acreditar naquelas histórias que você me contava antes de dormir. Acredito sim! Sempre acreditei!!!
Como quando você subiu no apoio daquela passarela do pontilhão e começou a caminhar, e eu tive medo e gritei: - Você não tem medo de cair daí? Não tem medo de morrer? E você me olhou fixamente e respondeu: - Não! Eu tenho medo de não viver!
Ali eu soube que você seria minha vida e que, quando parti, mesmo que meu coração continuasse batendo, eu estaria morrendo a cada dia em que não pudesse mais jogar pedrinhas em sua janela, a cada dia que não olhasse em seus doces e escuros olhos, a cada minuto que não sinto teu cheiro, o cheiro das flores, o teu calor, aos dias chuvosos sem vinho e poesias, aos dias de frio sem o teu corpo. E, principalmente aos dias de desespero sem a tua calma, e aos dias bons, que nunca mais serão completos sem você pra dividir a alegria.
Mas mesmo assim eu fui, te deixei naquela janela a me olhar desaparecendo no horizonte, e jamais tive coragem pra voltar. Mas já faz seis meses que médicos me disseram que tem algo me matando aqui por dentro, eu não quis saber direito o que era, não entendo isso, eles dizem que o caso é grave, está em estado avançado esta coisa, e dizem que não sabem quanto tempo tenho. Mas disse que tive tempo suficiente. Acredite meu beija-flor, não pe este câncer que está me matando, o problema é que abandonei minha cura em uma casinha branca, da qual tenho certeza que nunca saiu, por motivos que sabemos bem quais são, que nos deram medo, mas que hoje, não significam nada. Isso ta me matando a quase 10 anos e não vou sobreviver mais um dia sem deixar que você saiba que eu sempre acreditei em nós, ainda acredito. E que se não conseguia responder as tuas perguntas, não era porque não tinha certeza, você foi minha única certeza, é que eu sempre achei que você já sabia de tudo, e me enganei...
Eu ouvi Maria Bethânia recitando algo. Lembra-se dos dias em que só ouvíamos Caetano e Bethânia? Acho que foi um presente a nós, a seguir lhe escrevo os versos:

Eu sei que atrás deste universo de aparências,
Das diferenças todas,
A esperança é preservada.

Nas xícaras sujas de ontem,
O café de cada manhã é servido.
Mas existe uma palavra que não suporto ouvir,
E dela não me conformo.

Eu acredito em tudo,
Mas eu quero você agora.
Eu te amo pelas tuas faltas,
Pelo teu corpo marcado,
Pelas tuas cicatrizes,
Pelas tuas loucuras todas minha vida.
Eu amo as tuas mãos,
Mês que por causa delas,
Eu não saiba o que fazer das minhas.
Amo teu jogo triste.
As tuas roupas sujas,
É aqui em casa que eu lavo.
Eu amo tua alegria,
Mesmo fora de si,
Eu te amo pela tua essência.
Até pelo que você poderia ter sido,
Se a maré das circunstâncias,
Não tivesse te banhado nas águas do equívoco.
Eu te amo nas horas infernais e na vida sem tempo,
Quando sozinho, bordo mais uma toalha de fim de semana,
Eu te amo pelas crianças e futuras rugas.
Eu te amo pelas tuas ilusões perdidas,
E pelos teus sonhos inúteis.
Amo teu sistema de vida e morte.
Eu te amo pelo que se repete e nunca é igual.
Eu te amo pelas tuas entradas, saídas e bandeiras.
Eu te amo desde os teus pés até o que te escapa.
Eu te amo de alma para alma,
E mais que as palavras,
Ainda que seja através delas que eu me defenda,
Quando digo que te amo mais que o silêncio dos momentos difíceis,
Quando o próprio amor vacila.

Digo mais, meu amor não vacilou, eu vacilei, mas saiba que te amo de tal forma e intensidade, que nem mesmo o chamado amor suporta em seu significado.
E te amo ainda mais pela vida que teve longe de mim, sem egoísmo algum. E isso nunca vai morrer!
E meu único desejo é continuar sendo a tua flor, meu doce beija-flor, desculpe demorar a dize-lo.
A primeira vez que a flor beija o beija-flor!

Beijos do seu Lírio!
...

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